Simpósio: TEORIA DA MUDANÇA CONSTITUCIONAL NA REPÚBLICA BRASILEIRA

 

Coordenador: Teresa Robichez de Carvalho - Mestranda em Direito Constitucional e Teoria do Estado (PUC-Rio)

A Constituição Cidadã e a questão da reforma

Expositores:

1) Priscila Maddalozzo Pivatto – Mestranda em Direito Constitucional e Teoria do Estado (PUC –Rio)

    O período republicano de 1891: construindo a teoria da mudança constitucional no Brasil

2) Fernando Ramalho Ney Montenegro Bentes - Mestrando em Direito Constitucional e Teoria do Estado (PUC –Rio) 

    O desafio constitucional dos anos 30
3)Mariana Fittipaldi - Mestranda em Direito Constitucional e Teoria do Estado (PUC-Rio)

    Reforma Constitucional nas Cartas de 1946 e 1967

Instituição de fomento: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC - Rio   

 

A formulação deste trabalho é fruto de um grupo de pesquisa  orientado pelo professor Dr. José Ribas Vieira.  Percebemos em nossos estudos a carência doutrinária, no âmbito constitucional, relativa ao período anterior à Constituição de 1988. Desta constatação, surgiu o interesse de pesquisar quais os fundamentos e tradições teóricas utilizadas pelos constitucionalistas brasileiros que comentaram as Cartas  passadas. Entendemos ser de extrema necessidade a análise do constitucionalismo brasileiro como um todo, incluindo cada momento constitucional, o que nos enriquecerá certamente para entendermos melhor, inclusive, a Constituição Brasileira em vigor.

Metodologicamente optamos por trabalhar a partir da formulação teórica de determinados juristas que se dedicaram, cada um a seu tempo de atuação, a escrever obras sobre o Direito Constitucional. A pertinência de usar doutrinas jurídicas como fonte reside no fato de que os autores podem ser considerados construtores de sentido do Direito, uma vez que contribuem decisivamente na formação de uma cultura jurídica, seja por meio da formação pedagógica de bacharéis, das interpretações de enunciados legais, das propostas de definições e classificações de categorias jurídicas ou de posicionamentos frente a questões controversas enfrentadas em cada período histórico vivenciado por eles. Essa forma de abordagem é pensada metodologicamente através da ótica teórica apresentada por Pierre Bourdieu. Assim, a doutrina é entendida como prática lingüística que atua como forma de poder simbólico, uma vez que exterioriza percepções do mundo social. Considerando ainda que o discurso doutrinário é uma fala autorizada, isto é, que o escritor jurídico é dotado de força social e desfruta de autoridade e competência legítimas para emitir opiniões, é possível afirmar que sua atuação contribui na formação de imaginários coletivos acerca da ordem do mundo, seja reforçando e naturalizando visões dominantes ou sugerindo possibilidades de ruptura com elas.

O trabalho está estruturado na seguinte periodização: 1) a ordem liberal, retratada pela Constituição de 1891, articulando este ponto com os impasses do liberalismo no Brasil; 2) a ordem social, representada pelas Constituições de 1934 e 1946, que sofreram forte influência estrangeira, em especial da Constituição de Weimar – 1919; 3) a ordem autoritária, compreendendo a Constituição de 1937 e o período pós-64, ponto em que se estabelece a interface com a Teoria Política autoritária brasileira; e 4) uma denominada ordem democrática tendo sido consolidada pela Constituição de 1988 que justifica este estudo do pensamento constitucional brasileiro.

Seguindo, assim, a periodização estabelecida, o levantamento inicial se deu através da denominada ordem liberal. A nossa escolha recaiu sobre um dos formuladores da Constituição de 1891, Rui Barbosa, e sobre seus comentaristas, Agenor Roure e João Barbalho. A preocupação da ordem constitucional liberal é de dois aspectos institucionais: o dualismo do Judiciário e o Federalismo. Em última análise o que perpassa é o tema da centralização do Poder. Embora não haja uma clareza a respeito da permanência da norma constitucional e dos limites do poder de reforma há um consenso de que a estabilidade se constrói pelo respeito ao pacto federativo. Basicamente, percebe-se que o problema institucional (federalismo) concentrou todos os esforços em detrimento de questões de maior alcance como a democracia e direitos individuais.

Na denominada ordem social encontramos uma certa complexidade que é percebida na distinção de dois momentos constitucionais, a saber, 1934 e 1946, ambos sob a influência da Constituição Alemã de 1919, mas cada uma valorizando aspectos distintos. No tocante a 1934 destacamos o pensamento constitucional bastante voltado para uma noção de estabilidade constitucional. A temática da Constituição de 1934 diferencia-se por não estar mais em jogo o pacto federativo, nela sendo incorporados os direitos individuais como cláusula pétrea. Confirmando essa tendência, Bandeira de Mello (MELLO, 1934), ao dispor sobre a estabilidade da Constituição, entende conveniente associá-la, diretamente, à rigidez da Constituição e constrói sua teoria tentando demonstrar a insegurança presente nas constituições flexíveis. A influência da doutrina alemã é consolidada, posteriormente, em nossa Constituição de 1946, que além de incorporar tendências da Constituição de Weimar, teve também como inspiração para sua interpretação a Lei Fundamental de Bonn, de 1949, que criou a República Federal da Alemanha. Essa linha já seria uma constatação de que o Brasil não poderia estar preso a um passado como de 1919 de Weimar, mas de uma nova quadratura histórica que surge da institucionalização da República Alemã.  Nessa perspectiva está clara a contribuição de Orlando Bittar (BITTAR, 1951), constitucionalista que aponta para a importância do artigo 79, inciso 3º, da Lei Fundamental de 1949, isto é, das cláusulas pétreas, que amarram os princípios da dignidade humana e direitos fundamentais, demonstrando a preocupação do autor com a manutenção da estabilidade da norma constitucional no ordenamento brasileiro. Nesse mesmo tratamento inovador, nos deparamos com a presença de Raul Machado Horta (HORTA, 1999) que irá, ao contrário da nossa tendência constitucional republicana ligada à teoria do poder constituinte derivado ou de reforma, interpretar a Constituição de 1946 à luz da teoria da mutação constitucional como foi formulada por Jellinek e seus seguidores. Nesse período, mais precisamente no início dos anos 50, teremos uma obra de referência dentro da linha tradicional do pensamento constitucional brasileiro que é de Nelson Sampaio (SAMPAIO, 1954). Este foi o constitucionalista que elaborou de forma mais técnica e objetiva uma teoria da mudança constitucional.

Em relação à ordem autoritária, destacamos a concepção autoritária de Estado de Jarbas Medeiros. Acreditamos que haverá uma certa dificuldade de depreender esse autoritarismo no campo jurídico, pois a sua obra central em relação à Carta de 1937 são discursos. Torna-se natural buscar neste autor as temáticas de legitimidade e mudança constitucional. Em relação ao período pós 1964, mesmo não estando vinculado a este momento de autoritarismo, buscamos Anna Cândida Ferraz (FERRAZ, 1986), autora mais propícia ao início da redemocratização brasileira. A constitucionalista, mesmo ressalvando essa contextualização, estabelece uma Teoria da Mudança Constitucional Geral possível de ser empregada em qualquer ordem constitucional. Tal proposta visa articular uma dinâmica a estes sucessivos momentos históricos brasileiros que muitas vezes não estiveram vinculados à questão da legitimidade. Procura também enquadrar o Brasil nos debates em outras ordens constitucionais democráticas, o que somente por meio da nossa inserção na teoria da mudança constitucional poderia ser possível. No tocante à denominada ordem democrática, principalmente, em seu momento pós 1988, encontraremos dois exemplos diametralmente opostos de formulação teórica. De um lado Oscar Vilhena Vieira (VIEIRA, 1999) que estuda comparativamente as teorias constitucionais alemã e americana, priorizando esta última. Assim, Vilhena Vieira trará uma certa originalidade ao pensamento republicano brasileiro na medida em que rompe essa variável de estabilidade e instabilidade propondo uma nova questão, realocando a compreensão da legitimidade. Num outro campo temos a obra de Uadi Bulos (BULOS, 1997), que embora se aproxime do propósito de Vieira ao abordar questões relacionadas às mudanças constitucionais, diferencia-se deste  quanto ao referencial teórico adotado. Enquanto Vilhena Vieira demonstra uma preocupação de cunho mais político, destacando os limites e possibilidades de mudança, Bulos dá prosseguimento aos estudos de Nelson Sampaio e Cândida Ferraz fazendo uso de uma metodologia analítica de caráter técnico, descritivo e classificatório.

Constatamos que os impasses vivenciados pela formulação teórica constitucional destes quase vinte anos de redemocratização não poderão ser resolvidos, como tem feito a doutrina jurídica brasileira, por meio de um diálogo voltado apenas para as teorias constitucionais americana e européia ou somente através de uma aproximação com o debate da filosofia do Direito contemporânea. As freqüentes reformas sofridas pela Constituição de 1988 apontam para as questões de legitimidade e de estabilidade constitucional, cujos debates sempre estiveram presentes entre os temas estudados por constitucionalistas ilustres de outros momentos históricos brasileiros. A pesquisa constatou não só a necessidade de um retorno às obras destes autores, como também a necessidade de se desenvolver uma metodologia e historiografia próprias que muitas vezes o campo do Direito não fornece. Muito embora o tema dos fenômenos de alteração constitucional seja freqüente nos debates jurídicos brasileiros contemporâneos, os trabalhos que se dedicam a analisar o processo na perspectiva histórica ou que remontam a períodos anteriores à Constituição de 1988 são escassos. Em certa medida, percebe-se na história jurídica do país uma tentativa de apagar as memórias de experiências passadas, tal a profundidade das rupturas institucionais. No momento em que uma nova constituição passa a vigorar no país, os esforços são no sentido de esquecer os documentos que a precederam.

À guisa de conclusão notamos que no período de 1891 a 1988, observa-se uma tensão entre ordens constitucionais democráticas e autoritárias. Nas primeiras, houve uma mescla da proteção dos direitos individuais com a promoção dos direitos sociais (a partir de 1934), fato que não se verificou no período autoritário, principalmente, pela falta de legitimidade constitucional. Após esta sucessão de constituições e períodos constitucionais autoritários e democráticos, indaga-se sobre a legitimidade da própria Constituição de 1988: será que as constantes alterações de seu texto não estariam violando uma ordem democrática e promotora dos direitos humanos? Será que a confiança popular e institucional não se abala com uma constituição mutante? Talvez sim, mas há argumentos no sentido oposto: a flexibilidade da constituição é um remédio contra a ruptura constitucional, fato corriqueiro em nossa história. É preferível adaptá-la à conjuntura histórica, seguindo os processos de reforma que ela determina, a abandoná-la mais uma vez. Neste contexto, tanto a flexibilidade constitucional quanto sua continuidade são um indício de amadurecimento das instituições democráticas e da própria Constituição. Quanto à mudança constitucional, a breve duração das constituições brasileiras, ao longo da história republicana, não fez amadurecer uma literatura de estudo dos processos informais de mutação constitucional. Em vez disso, a doutrina jurídica só se preocupou com os processos formais de mutação.